Miguel Carvalho assina esta semana na Revista "Visão" a crónica que transcrevo:
O Governo faltou às cerimónias evocativas do centenário do nascimento de Miguel Torga. Em Coimbra, inaugurou-se escultura de monta, fizeram-se as honras ao poeta maior. Entidades locais, familiares, amigos e umas centenas de populares disseram presente. O Primeiro-Ministro José Sócrates e os que com ele governam fizeram de conta.
O tema deu pretexto para indignações. Acesas.
Não sendo provável que o problema seja de memória, é mais sensato pensar tratar-se de falta de leituras, notou António Arnaut, velho republicano e socialista. É uma explicação razoável: os governantes andam sempre mais necessitados de manuais de auto-ajuda do que de reflexões sobre a portugalidade.
Mas não há razão para tanto alarde.
Vendo bem, o que faria qualquer membro do Governo na evocação da memória de um homem que sempre recusou a servidão e o foguetório, ao mesmo tempo que denunciou, com quantas forças tinha, «o cínico desprezo» e «o mais demagógico impudor» a que o povo português foi sucessivamente votado?
Socialista ético, mais do que ideológico, Torga emprestou ao PS as suas palavras, a sua rectidão, a coluna vertebral, a honradez, quando a democracia não era ainda um processo consolidado. Homem de compromissos, de palavra dada, nunca passou cheques em branco à insustentável leveza das circunstâncias. Acreditou que o socialismo prometido seria, mesmo neste País dado a improvisos, algo de concreto. Caminho «dignamente descoberto e trilhado». Em boa verdade, porém, Torga raramente se iludia com as artes dos homens guindados ao poder. Para os conhecer, bastava-lhe ter calcorreado o País acomodado, dado a outras liturgias que não a fiscalização e a denúncia cívica, firme, dos desmandos e das traições dos eleitos.
O poeta sempre soube que, tanto no particular como no geral, «raramente o alcançado corresponde ao desejado». Neste País, sabe-se como os homens políticos se esmeram para levar a máxima à exaustão.
Torga acreditou num socialismo que honrasse a palavra. Não é já desse carácter o partido que governa Portugal. Como ele próprio escreveu, «ninguém pode dignificar uma coisa em que não acredita». Assim sendo, o melhor é mesmo não aparecer. Demonstra, pelo menos, um pingo de vergonha.
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